A caverna digital de Platão: uma metáfora sobre a educação de crianças e adolescentes em tempos de digitalização.

Representação da metáfora do mito da alegoria da caverna de Platão gerada por IA, a partir do texto de Marcelo Fattori

Autor: Marcelo Fattori
Advogado em direito digital e proteção de dados
Ativista pela educação da cidadania no curriculo escolar

O ano é 2024 e somos surpreendidos por mais uma morte de menor de idade, estudante de um renomado colégio sulista, como consequência do desespero pelas consequências ética, moral e reputacionais da violação de sua intimidade, por meio da revelação desautorizada de vídeos íntimos de um relacionamento juvenil dos tempos modernos. Como pai de crianças, professor universitário e ativista da educação para a cidadania digital, valho-me da indignação para, tentando me afastar do senso comum, conseguir jogar foco de luz na solução dessa trágica realidade contemporânea.

Eis que me vem à memória o mito da alegoria da caverna, apresentada no livro VII, de A República de Platão, escrito no século IV, a.c.

Pois, sim, o mito da caverna é atualíssimo e pode ser um ponto de partida para o pensamento proposto. O mito relata a lenda de prisioneiros de uma caverna que, desde o nascimento vivem ali acorrentados de frente para uma parede, aprisionados a vida toda no mesmo lugar, de onde não avistavam os extremos da caverna, não conheciam a luz, não tinham sequer ideia da existência de um mundo exterior ou da possibilidade de existir vida fora das correntes.

Seus conhecimentos limitavam-se à realidade dos ecos de seus sons e às projeções muitas vezes distorcidas de sombras na parede à sua frente, que eram provocadas por objetos e sinais que passavam por uma fogueira incessante que ficava em suas costas.

Em determinado momento da história, um dos prisioneiros libertado das correntes enxerga a luz da fogueira e descobre muitas pessoas aprisionadas, até que consegue acessar o local de entrada da caverna e se depara com a luz do sol que ofusca sua visão, remetendo-lhe a uma sensação de profundo incômodo e medo. Essa sensação vai se transformando com o passar do tempo, na medida em que sua visão se acostuma com a luz, revelando-lhe um mundo, uma verdade, uma condição que desconhecia.

O prisioneiro liberto, por meio da descoberta – uma das duas formas de aquisição do conhecimento segundo o filósofo Santo Tomás de Aquino – aprendeu por meio da experiência que as sombras que ocupavam sua visão, ou os sons que ecoavam no fundo da caverna, eram reflexos distorcidos de uma realidade muito maior e abrangente representada pela natureza, pelo canto dos pássaros e pela riqueza dos detalhes que estavam esculpidos diante de seus olhos.

O prisioneiro liberto, agora detentor do conhecimento, tem por justo o retorno para o interior da caverna para narrar a novidade e libertar os ex-companheiros e dar-lhes a opção de escolha de continuarem aprisionados ao interior da caverna ou viverem a experiência do conhecimento da realidade do mundo exterior, da luz, ainda que uma possível consequência como sugere NISKIER (2024, p. 42) fosse considerado como louco por aqueles que jamais tiveram ideia de que aquilo fosse possível.

A metáfora da caverna de Platão com o caso que me propus refletir, é bastante oportuna, vejamos: considere nossa sociedade atual, onde o buraco da caverna é o mundo digital, os prisioneiros são as crianças que já nascem aprisionadas às tecnologias. A parede que reproduz as sombras são as telas, as correntes podem ser os joysticks, cujo poder de imobilização é eficiente mesmo quando operado por bluetooth.

A realidade observada pelos aprisionados na moderna caverna digital é aquela refletida nas paredes das redes sociais, entretenimento e jogos online, notícias e informações disseminadas na internet, que podem representar uma versão parcial e muitas vezes distorcida da realidade mais ampla. Para crianças e adolescentes, cujas percepções do mundo e de si mesmos estão em formação, essa realidade distorcida pode influenciar fortemente suas visões, valores e comportamentos.

A jovem não teve, infelizmente, acolhida, informações e elementos confiáveis, para uma tomada de decisão pensada, baseada no conhecimento e que refutasse a mínima possibilidade de uma decisão radical.

Como se vê no caso do sul, o medo das consequências dos julgamentos liminares e da consequente destruição da reputação, a desinformação sobre condutas e respostas a serem dadas em situações como as aqui tratadas, pode ser fatal, como ocorreu com a jovem sulista.

Para reverter esse quadro, minha reflexão buscou quem poderia melhor desempenhar o papel do prisioneiro liberto que volta à caverna para conscientizar e libertar os demais aprisionados dessa realidade distorcida que vivemos.

Uma resposta de inopino sugeriria os pais ou responsáveis, como os mais indicados para essa missão. Refleti sobre esse ponto e conclui que não seriam os atores mais adequados. Arrisco até dizer que, em grande parte das famílias brasileiras, muitos deles também necessitam do apoio do prisioneiro liberto.

Confirmo essa minha opinião na experiência prática. Em minhas atividades sobre a educação digital, ou mesmo nos grupos de pais que participo, não raro muitos deles relatam a dificuldade de educar em uma era na qual não temos modelos referendados de educação, como tiveram nossos pais e mães. Isso sem falar no fato de que muitos dos pais também estão ofuscados pela luz azul das telas.

Eis que depois de muito refletir e pesar as possibilidades e consequências, em minha modesta opinião, penso no prisioneiro liberto dessa metáfora da alegoria da caverna de Platão e que tomei emprestada para retratar o mundo contemporâneo, como a figura do professor.

Meu pensamento está fundamentado no fato de que o professor que vivenciou em seu processo de formação a descoberta da realidade, da grandeza e infinidade da natureza e a real dimensão dos valores, se libertou da ignorância e foi empoderado, tornando-se apto a guiar os demais aprisionados até alcançar o conhecimento por meio do ensino – segunda das duas formas de aquisição do conhecimento conforme Santo Tomás de Aquino.

Muitos poderão discordar, sob a alegação de que essa proposta não resistirá ao experimento das salas de aula, espaço diversificado e muitas vezes povoadas por professores experientes, de cabelos grisalhos, avessos à tecnologia. Aliás, muitos inclusive os consideram velhos demais para o mundo atual que exige, segundo suas concepções, professores alinhados com tecnologias e ferramentas de última geração.

A estes, ouso afirmar que estão equivocados. A solução ou ponto de partida para a transformação da panaceia criada pela profusão de informações inúteis, e de uma sociedade que se viu obrigada a julgar e valorar o comportamento de seus membros sem qualquer compromisso ético, exige a retomada de um modelo educacional baseado na experiência e na vivência.

Ao contrário do que muitos podem propor, minha convicção se forma no sentido de que, antes de prepararmos os estudantes para manusear as ferramentas tecnológicas de ponta, é preciso garantir que tenham condições de o fazer sem cair nas suas amarras inquebrantáveis, abrindo-lhes a visão contra o ofuscamento das luzes artificiais das telas e sobre os riscos dependência tecnológica, e para essa missão ninguém melhor do que aqueles que detém mais experiência de vida e tempo de estrada.

Óbvio que os professores também deverão ser preparados, na lógica do processo de formação contínua, para o uso das tecnologias de ponta. Não se trata de uma ode pela proibição de ferramentas ou uso da inteligência artificial. Longe disso, reconheço sua importância e grande utilidade quando utilizadas corretamente, o que exige pessoas providas de um conhecimento e visão mais amplos orientando o seu uso.

Concluo minhas reflexões com a ideia de que aquele que é a solução, também é parte desse constante movimento de transformação e que precisa estar sempre atualizado. Entretanto, o professor, que ainda que tenha vivido em grande parte do tempo distante das habilidades desse mundo paralelo da realidade tecnológica, é detentor do essencial para o início desse processo: o conhecimento, os valores éticos e a experiência pela vivência.

Esses elementos não os farão resistir ao chamado da sociedade para voltarem para as cavernas digitais para libertar nossos estudantes aprisionados.

Mudou-se o locus, mas os valores não.

Para tanto é imperioso um processo estruturado de educação para a cidadania, presente na rotina semanal de sala de aula, com professores formados para essa tarefa impulsionando nossos estudantes a serem agentes transformadores dessa realidade na comunidade em que vivem.

Referências

DESMURGET, Michel. A FÁBRICA DE CRETINOS DIGITAIS: Os perigos das telas para nossas crianças. Tradução: Mauro Pinheiro. São Paulo: Vestígio, 2021 

FATTORI, Marcelo. ALUNOS DIGITAIS: CULTURA DE CIDADANIA DIGITAL: Memorial descritivo pedagógico do programa. São Paulo. SP. 2023.

Niskier, Arnaldo. FUNDAMENTOS DA HISTÓRIA E FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO. Petrópolis. RJ. Editora Vozes, 2024.

PERON, L.; DA SILVA BELLINCANTTA MOLLOSSI, L. F. OS PERIGOS DAS TELAS PARA AS CRIANÇAS. Revista Inter-Ação, Goiânia, v. 48, n. 1, p. 1–14, 2023. Disponível em: https://revistas.ufg.br/interacao/article/view/71238. Acesso em: 2 abr. 2024.

SIEGEL, Daniel J.; BRYSON, Tina Payne. O CÉREBRO DA CRIANÇA: Estratégias para nutrir a mente em desenvolvimento do seu filho e ajudar sua família a prosperar. São Paulo. SP. nVersos, 2015.

TWENGE, Jean M. IGEN: Por que as crianças superconectadas de hoje estão crescendo menos rebeldes, mais tolerantes, menos felizes e completamente despreparadas para a idade adulta. São Paulo. nVersos, 2018.